Friday, October 07, 2016

Flores para Bolsonaro II



Este é o segundo poema que traduzo do Flowers for Hitler, livro publicado em 1964 pelo singer-songwriter canadense Leonard Cohen. O primeiro está aqui.



MILÊNIO


Este poderia ser meu livrinho
de amor
se eu o escrevesse --
mas meu bom demônio disse:
'Esquece os documentos!'
Todos me olhavam
queimar meus livros --
Rodei minha tocha da liberdade
feliz como um monstro da Gestapo
tudo que eu queria salvar
era uma cicatriz
uma ou duas queimaduras --
mas meu bom demônio gritou:
'Esquece os documentos!
O fogo não interessa!'
A pilha queimava tranquilamente
Fui pra casa para um banho
Liguei pra minha avó
Aquela da artrite.
'Se cuida', eu disse, 'esquece a dor.'
'Você também', ela respondeu.
Horas depois fiquei pensando
no que ela quis dizer
que eu esquecesse a minha dor
ou a dela?
E nisso meu bom demônio voltou:
'Isso é tudo que você pode fazer?'
Bem... era?
Era tudo que eu podia fazer?
Havia uma senhorinha
comendo sozinha, pensando
no Príncipe Alberto, nos campos de Flandres,
em Chisinau, dedos machucados demais
pros botões da TV;
mas como eu podia ir até lá?
Já não não tinha livros
tampouco endereços --
meu bom demônio voltou:
'Danem-se os documentos
Você sabe chegar lá!'
E de repente eu cheguei!
Lembrei de cabeça!
Encontrei-a
derramando-se sobre a árvore genealógica
da família real
'Vó'
eu quase disse
'Tá de cabeça pra baixo --'
'Olha', ela disse,
'só vai até o George V'.
'O suficiente
minha doce vampira!'
'Tem razão!', ela cantou
e queimou o encarte
da London Illustrated
Não entendi
que dia era aquele
até que olhei pra fora
e vi as janelas todas em fogo
e multidões de homens
doidos pra falar
e gatos e cachorros e pássaros
sorrindo-se uns aos outros!


MILLENNIUM


This could be my little
book about love
if I wrote it--
but my good demon said:
'Lay off documents!'
Everybody was watching me
burn my books--
I swung my liberty torch
happy as a gestapo brute;
the only thing I wanted to save
was a scar
a burn or two--
but my good demon said:
'Lay off documents!
The fire's not important!'
The pile was safely blazing.
I went home to take a bath.
I phoned my grandmother.
She is suffering from arthritis.
'Keep well,' I said, 'don't mind the pain.'
'You neither,' she said.
Hours later I wondered
did she mean
don't mind my pain
or don't mind her pain?
Whereupon my good demon said:
'Is that all you can do?'
Well was it?
Was it all I could do?
There was the old lady
eating alone, thinking about
Prince Albert, Flanders Field,
Kishenev, her fingers too sore
for TV knobs;
but how could I get there ?
The books were gone
my address lists--
My good demon said again:
'Lay off documents!
You know how to get there!'
And suddenly I did!
I remembered it from memory!
I found her
pouring over the royal family tree,
'Grandma,'
I almost said,
'you've got it upside down--'
'Take a look,' she said,
'it only goes to George V.'
'That's far enough
you sweet old blood!'
'You're right!' she sang
and burned the
London Illustrated Souvenir
I did not understand
the day it was
till I looked outside
and saw a fire in every
window on the street
and crowds of humans
crazy to talk
and cats and dogs and birds
smiling at each other!

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