Saturday, September 29, 2012

Soneto Inglês 3 - Agora que amanheces



SONETO INGLÊS 3 - AGORA QUE AMANHECES


Agora que amanhece vem me dar
boa-noite, serão horas de dormir.
Agora que amanheces, tua flor
em chamas pelo meu sexo reclama.
Vagabundíssimo, me deixo estar.
As noites separados, rasga-as
como inútil pedaço de papel.
Já sei: rasga-as ao léu como se foram
a merdalhada do paulocoelho.
Te carrego a um tempo sem amanhã,
para o estio por detrás do espelho
where there's an angel standing in the sun.
    E fia-te, apenas, meu amor, enfim,
    no que te fui, no que me foste em mim.

Friday, September 28, 2012

Dois Monstros Lígures





Não se fala muito na Ligúria, né? Por aqui não rendeu prato ou pizza como calabresa, bolonhesa, milanesa, napolitana, piamontese. É faixa de terra estreita encravada no mar, onde estive duas vezes: quando em Gênova e, três anos depois, numa viagem odisseica de trem que nos levou de Napoli a Alba, no Piemonte, aonde fomos para trufas e Barberas.

Em termos de indústria do turismo tem Gênova, claro, ainda que patinho feio, irmã do meio, perto das estupendas deslumbrantes Florença, Veneza, Roma. E tem Cinque Terre.

Mas a Ligúria do meu coração é outra, é terra de dois monstros: a banda de rock progressivo Museo Rosenbach, primus inter pares, até hoje minha preferida de todas, e o poeta genial que atende pelo nome de Eugenio Montale.

O Museo lançou o seminal Zarathustra há exatos 40 anos. Deus, onde a super edição quádrupla remasterizada com um livro de 500 páginas?

O Montale escreveu, dentre outros, "A Enguia".

A ENGUIA

A enguia, a sereia

dos mares frios que deixa o Báltico
para chegar aos nossos mares
aos nossos estuários, aos rios
que do fundo remonta, sob a maré adversa,
de ramo em ramo e depois
de delgado capilar em capilar
sempre mais dentro, mais no coração
do rochedo, filtrando
entre veios de lama até que um dia
desfrechada uma luz dos castanheiros
acende-lhe a faísca em poças de água morta
nos fossos que conjugam os vales
apeninos à Romanha;

a enguia, tocha, látego,
flecha de Amor na terra,
que só nas furnas ou nos ressequidos
riachos pirenaicos reconduzem
a paraísos de fecundação;
a alma verde que busca
vida onde somente
morde o ardor e a desolação
a centelha que diz
tudo começa quando tudo parece
carbonizar-se, tronco sepultado;
a íris breve, gêmea
daquela que cravas entre os cílios
e fazes brilhar intacta em meio aos filhos
do homem, imersos no teu lodo, como podes
não crê-la tua irmã?

Wednesday, September 26, 2012

Nasce Nova Coleção - Fotografias






A new collection is born. Achando que colecionava poucos itens de fotografia: botequins (com as subseções cobogós, pinturas, azulejos, tipos humanos, fachadas), platibandas, serralherias, portas, pisos, mais cobogós, mais azulejos, Vasco, árvores, nomes de ruas interessantes, tipografias, letreiros em acrílico, grafites & so on & so forth, achei por bem dar início a uma nova coleção, para a qual já solicitei financiamento da FAPEPI e bolsa-sanduíche no Camboja.

By the way, alguém sabe o que é? =)

Tuesday, September 25, 2012

Virá a morte e ela terá teus olhos



Li o diário de Pavese, O Ofício de Viver, numa das viagens mais difíceis da minha vida: Belém-Brasília de ônibus em fins de janeiro de 1989. Devastado, encontrava algum consolo naquela alma sensível e nada complacente consigo mesma. Terrivelmente só, ainda mais só por ter de dividir o assento com uma família de casal e três filhos pequenos em que o pai era de egoísmo e machismo absurdos, encontrei companhia no Pavese, no livro em si (comprado em Belém) e naquele admirável escritor. Não era ficção que eu lia, mas vêm a propósito as palavras de David Foster Wallace: "fiction’s about what it is to be a fucking human being,". Ele que escrevia apaixonadamente para, quem sabe, ajudar os leitores a "become less alone inside".

A ficção de Cesare Pavese, só a conheci muitos anos depois. Li A Lua e as Fogueiras enquanto Dantinho nascia e amei. Em seguida emendei com Mulheres Sós, que achei bobagem.

A poesia de Pavese, bem, só vim a conhecê-la neste ano, num formidável pé-sujo da Tijuca, com azulejos e cobogós de cores nunca dantes navegadas.


VERRÀ LA MORTE E AVRÀ I TUOI OCCHI 


Verrà la morte e avrà i tuoi occhi
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola
un grido taciuto, un silenzio.
Così li veddi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla.


Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.



VIRÁ A MORTE E ELA TERÁ OS TEUS OLHOS
(Trad. Mario Mieli)


Virá a morte e ela terá teus olhos
essa morte que nos acompanha
da manhã até a noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Teus olhos
serão uma vã palavra
um grito sufocado, um silêncio.
Assim os vês a cada manhã,
quando sobre ti sozinha te debruças
no espelho. Oh, cara esperança,
naquele dia saberemos nós também
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e ela terá teus olhos.
Será como acabar com um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios cerrados.
Redemoinharemos no abismo mudos.







Baú de Afetos, Revisitado



Este o diário da minha viagem de 2007 à Alemanha. Final de março, começo de abril. Larguei tudo: família, mulher, trabalho e tese. Mais largara se mais houvera. Não existia Dante ainda.

Na primeira página, a razão de tudo nos autógrafos: Hugh Banton, Peter Hammill, Guy Evans. Esta viagem, by the way, está documentada aqui. Mas é que hoje, sendo começo de primavera, remexi o baú de afetos.

Monday, September 24, 2012

As Horas Não Gastas



As Horas Não Gastas

Gostava de acordar bem cedo
e viver as horas não gastas do dia
(dizia o dia em sua crisálida)
fazia o café insuportavelmente forte
e lia vários livros ao mesmo tempo
independente do dia da semana do mês

Meu pai independia
pequeno burguês da Tijuca funcionário público
dois casamentos quatro filhos
Ao independer de tudo e todos
meu pai insurrecto
mais livre que muito cabeludo
cheio de maconha vendendo bijuteria na calçada.

Sunday, September 23, 2012

VISITAÇÃO



VISITAÇÃO

Pelo olho-mágico
teus mágicos
olhos

Aberta a porta
teus mágicos
óleos

Friday, September 21, 2012

Motivos Fitomórficos em Trabalhos de Serralheria em Portas

A-há, parece até nome de tese. Bem, como tenho essa mania temática, seguem alguns belos trabalhos de serralheria em portas aqui de Niterói e uma do Jardim Botânico, Rio. Em comum: todos com motivos, digamos, fitomórficos.

Uma parreira em porta aqui do Ingá, coqueiro e trevos em Icaraí, uma bizarra palmeira no deserto (com direito a pirâmides) no Fonseca. Nesta, aliás, perceba-se o feio expediente que muitos donos de portões com trabalhos de serralheria passaram a lançar mão: uma placa (?) preta feia colada ao portão, com o intuito de vedar a visão. Oras...



Ingá

Icaraí

Icaraí


Fonseca

Fonseca

Jardim Botânico

Portas de Villas

Quando havia casas e vilas aqui em Niterói, a entrada de muitas destas era através de um portal que estampava, orgulhoso, o nome da dita-cuja. Nada a ver com os horríveis portões de segurança que muitas passaram a colocar a partir dos anos 80. Aliás, as fotos mostram que essas grades feias (mais uma vez: nada a ver com os belos trabalhos de serralheria) passaram a fazer parte dos portais. Analisando as fotos, parece que os portais franqueavam entrada e saída dos visitantes e moradores e as grades foram postas depois. Niteroienses velhos, é isso?

A Villa Brasil está no Ponto de Cem-Réis.
A Villa Bibi em Icaraí
A Odette, S. Francisco de Paula e Lourdes, no Ingá. Ainda.

As fotos não estão grande coisa, mas permitem que se veja a beleza e a sutileza de alguns tipos, principalmente a Brasil e a Odette.





Wednesday, September 19, 2012

SONETO INGLÊS 2




SONETO INGLÊS 2

Though I age these two hands don't seem to wither
they keep lean clean or as they say
feminine :: pianist's hands though I can barely play
a tambourine a doorbell :: though barely can I
these hands :: gotta admit :: seem so young
often strangers in the body they live in
their secret maybe lying in the prairies
of thy body where they never felt forlorn
and which taught them to unfold their affections
constellations of affections oh long repressed
these hands naked in their unending questions
in the miracle of thy skin they got dressed
   these two hands are thine thou have read the lines
   and they shall breathe and fly but next to thine.




Monday, September 17, 2012

Cantiga de Amor




CANTIGA DE AMOR



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Saturday, September 15, 2012

C.V.




C.V.

No maternal passei com distinção
e com louvores no jardim de infância
No primeiro grau quase levei pau
Mas do segundo eu me saí sem ânsia

A graduação, bem, tirei de letra
Dever de casa:  ler o dia inteiro,
durante as aulas namorava a Preta
e ensaiava o meu estro soneteiro.

E logo fiz-me Mestre em Lit. Bras.
Depois Doutor com Goa no horizonte.
Hoje deixo tudo isso para trás:

desprezo todo ensinamento sábio
e a verdade eu a ouvirei na fonte
dos teus bons grandes e pequenos lábios

Sapatos Floridos



SAPATOS FLORIDOS

Peguei sapatos velhos do meu filho
(tão pequeno e já tem sapato velho!)
e neles plantei flores, como quis
o Quintana: margarida, tomillho,

alcaravia, hortelã, sempre-viva.
O mundo é o mundo desde que nasci
(Ficará rodando depois que formos)
Tu não me enganas, velho, e não te engano a ti.

E se ele estanca em suas engrenagens
se parece que tudo perde o viço
lembremos antes que a manhã acabe:

a vida com pequenas sabotagens
é possível; na área de serviço
fazemos nossa primavera árabe.

Diálogo Détraqué



DIÁLOGO DÉTRAQUÉ

Ari

Toda família tem aquele tio desajustado alcoolatra
Na minha
sou eu

Toda família tem aquela tia détraqué interdita às crianças
Na minha
sou eu

Toda família tem aquele tio desajustado interdito às crianças
Na minha
sou eu

Toda família tem aquela tia détraqué alcoolatra
Na minha
sou eu

Toda família tem aquele tio détraqué desajustado
Na tua
sono io

Toda família tem aquela tia desajustada détraqué
Na tua
c'est moi

Toda família tem aquele pateta metido a poeta
Na nossa
Nós

Esbarro com Hilda



ESBARRO COM HILDA


No passeio da manhã de sábado cumprimentamos
a Laura das empadas
o Paulinho da água de coco
a Ana jornaleira
um vizinho aqui
outro ali.
Súbito esbarro em Hilda
deitada tão Hilda na calçada
em frente à banca.
Sendo sábado sendo manhã
Hilda se entrega:
o bafo a ressaca a languidez.

Hilda minha irmã
levo-te pra casa.

(Não sem antes
a das 11 no Edson)

Friday, September 14, 2012

Outra Antologia Poética dos Sapatos - Quintana




Embora de respeito, a antologia primeira, sempre de respeito antologia, por pequena, que inclua Carlos Nejar e Carlos Pena Filho, cometeu crime inafiançável (daí eu estar agora em Alcatraz) ao não incluir nada do Mário Quintana. Afinal, há três ocorrências / referências de / a seus sapatos em seu livro de sonetos A Rua dos Cataventos.

E as três magistrais. Cito duas.

XV

O dia abriu seu pára-sol bordado
De nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,
A Lua — a Lua! — em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
Parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,
Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
Pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,
Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranqüila de um açude...

XXX

Rechinam meus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!

Tinha um surrão todo de penas cheio...
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram... esvoaçaram no ar...

Todo de Deus me iluminei então.
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
"Como é possível sem doutrinação?!"

Mas entendem-me o Céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
"Olha! É o Idiota desta Aldeia!" dizem...

Thursday, September 13, 2012

Sonetilho do Dia do Bandeira




SONETILHO DO DIA DO BANDEIRA

Porque os corpos se entendem mas as almas não
Manuel
Vem, alça-te ao mastro
já bem levantado
Vem me dar bandeira
de modo impensado

Celebra a tua (nossa!)
sem-fim liberdade
Hasteada gozes
todas as vontades

isso, amor, que é sorte
morrer de exaustão
as pequenas mortes

não teremos poucas
as almas no chão
junto às nossas roupas

Wednesday, September 12, 2012

Do Lado de Cá



DO LADO DE CÁ

Éramos amigos separáveis
o tempo
cuidou de prová-lo.
A fidelidade dos mitos
está nos mitos
sequer há bruma sobre eles.
O que, do lado de cá,
resiste à gangrena corrosiva
a que chamam vida?

Entanto o poema
malgrado o que é
escreveu-se.

Tuesday, September 11, 2012

O Soneto do Desmantelo Azul




O Soneto do Desmantelo Azul
do Carlos Pena Filho é genial.
Sem talento para fazer igual
agarro-me ao céu. Mantê-lo azul

nestas retinas (antes tê-lo azul):
o que tentarei; depois, afinal,
às páginas de sangue do jornal
eu verterei este furtado azul.

Toma este poema com um grão de sal
perdoa o que tem ele de taful
mais um terceto já é o final.

Do soneto chegamos ao sul
Desfaz a cara feia, nada mal,
pra quem acordou se sentindo blue.




PS: bem, quem quiser ler o soneto do CPF, ele está aqui.

VONU PURE LAGER - FIJI ISLANDS




VONU PURE LAGER - FIJI ISLANDS

Eu bebo a tartaruga dessas ilhas
como se as próprias ilhas eu bebesse,
navego nestas águas de idílios
quando a lua em suas águas me anoitece.

A tartaruga, sabeis bem, é raça
que vagarosamente cumpre o dia,
dela herdei apenas a carapaça,
tolo e febril  em vãs melancolias.

Sempre ilhéu em meio às gentes, a estas
consagro os meus desprezos, e nas ilhas
de quelônios faço oníricas festas.

Luxos, langores, como peixe cru
e com esta companhia, vou nu
ruminando esperanças maltrapilhas.


Sunday, September 09, 2012

O Sol é uma Flor Gorducha




O SOL É UMA FLOR GORDUCHA


Quando o sol de setembro acaricia
todos castanhos caracóis do Dante
é mesmo algo de novo que inicia
(primavera talvez) neste instante.

E quando o sol setembro acaricia
Dante reúne caracóis castanhos
como que a avisar: algo inicia
e assim ele apascenta os seus rebanhos.

No seu apascentar ressona a paz
tecida e destecida com seus dedos
e o sol, pouco a pouco, mordisca a franja

da tarde (tardes estas sem rivais)
E Dante vai tecendo seus enredos
ao se pôr a gorducha flor laranja.

Pequena Antologia Poética dos Sapatos




Por volta da virada da década de 1990 escrevi um poeminha sobre sapatos e mandei-o pelo correio a meu amigo Luiz Marcelo. Eram tempos pré-Internet, bien sûr. O poema era:

O murro no muro dói
O grito solto assusta

Resta-me agora comer os sapatos lentamente.

Acho que era só isso e acho mesmo incrível que até hoje eu me lembre. Ajuda o fato de ele não ser muito longo, claro, e, tendo apenas três versos, não cometi ou cometo a tolice de chamá-lo de haikai.

Não o acho tão ruim assim, há aliterações nos versos iniciais (cômico falar em "versos iniciais" em poema tão lilipute) e o desfecho, após proposital pular de linhas, meio que inesperado: não é muito comum sair por aí comendo sapatos. Mesmo assim não o incluí em Taipa, que sairia em 94, e nem o incluiria hoje.

Não é um poema sobre sapatos, lógico, mas sim sobre angúsita. Pós-adolescente.

Mas se é para falar de sapatos em poemas, nossa literatura está muito bem servida, com belos sonetos de dois Carlos: o  Nejar e o Pena Filho. Seguem:

SONETO AOS SAPATOS QUIETOS


Os pés dos sapatos juntos.
Hei-de calçá-los, soltos
e imensos, e talvez rotos,
como dois velhos marujos.

Nunca terão o desgosto
que tive. Jamais o sujo
desconsolo: estando postos,
como eu, em chãos defuntos.

Em vãos de flor, sem o riacho
de um pé a outro, entre guizos.
Não há demência ou fome.

Sapatos nos pés não comem.
Só dormem. Porém, descalço
pela alma, é o paraíso.

(Nejar)


POEMAS E SAPATOS


Nada tenho de meu, nem os sapatos
que vão acompanhar este defunto.
Nem tampouco montanhas e regatos
que habitaram o verso, nem o indulto

pode valer-me, o soldo, mero extrato
de contas. Nada tenho, nem o intuito
consome esta vontade ou desacato.
Desapareça o nome, seu reduto

de carne e bronze, a fome incorporada
e mais desapareça onde fecundos
são dias e são deuses nesta amada.

Não foram nunca meus — sonhos e fatos.
Nada tenho. Poemas e sapatos
irão reconhecer-me noutro mundo.

(Nejar)


SONETO DO DESMANTELO AZUL


Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

(Pena Filho)

Deste último, o poeta do azul, post em breve.

Saturday, September 08, 2012

Ora, se chama Dante





Este menino, ora, se chama Dante
não é Dândi nem Dantes (já basta um)
arranca os sapatos a todo instante
e dá risada quando solta pum.

Este menino lá tem seus rompantes
na cabeça cultiva caracóis
manda pros ares o quartel de Abrantes
entra espelho adentro e desenha sóis

em céu cinza. Este menino é danado
se está com o pai, é um hippie despenteado
se está com a mãe, um mocinho elegante

Nisto vai um soneto inteiro, rá!
Então assim é fácil, porra, já
não se fazem sonetos como dantes.

Friday, September 07, 2012

Soneto Inglês 1




SONETO INGLÊS 1


O que perdi em vida desencontro
nestes dias untados de gordura
mantas de sebo em rotinas estéreis
orgulhos arrogâncias e fraturas.
Onde os gramados quentes das manhãs
do meu São José, onde o dia inteiro
que mal cabia em si, tantas as portas,
onde a infinita tarde de janeiro,
a melopeia do amolador de faca?
Onde o tio com sua sisudez,
os rios azuis da mão da minha avó?
Soneto de perdas, inda que inglês,
     não seja ele melancólico ou tristonho :
     o que perdi em vida recupero em sonho.

Wednesday, September 05, 2012

Daquele enforcado eu herdei os olhos




Daquele enforcado eu herdei os olhos
misto de pavor e resignação
da estrela herdei apenas a distância
e os cinco espinhos que guardo na mão

Daquelas tardes eu herdei cigarras
estourando no peito as suas ânsias.
Da mãe, sedes; do pai, lábios silentes
e o gosto por algumas imposturas.

De Dante, meu poeta renascente,
herdei o ar de quem habita exílios
e hesitações, à falta de um Virgílio.

E herdei a vida que eu sempre quis:
força para enfrentar a selva oscura
e o amor por uma certa Beatriz.


Sunday, September 02, 2012

Faca e Azeite



Nos meus anos de São José fui um eficiente zagueiro no dente-de-leite. Limitado, mas eficiente: chutava forte para onde o nariz apontava. Não era preciso muito mais do que isso. Em 1978 defendi o Goiás, em 79 o Campinense, em 80 o Guarani, em 81 o Grêmio.
Outro dia encontrei foto sorridente com o uniforme do Campinense-PB.


1979
um menino na aldeia Grajaú
vê como o tempo foi cruel, comprove
a foto que retiro do baú.

Claro que estou a repetir clichês
Cronos, lâmina, é também azeite
e a cada 25/6
confere ao beque do dente-de-leite

sabores humores um estupor
e com seu gasto fole reaviva
os borralhos do meu amor. E amor

não é um refrigério para a crise
amor é a crise, que me prova vivo.
After all nobody said 't was easy.



Manifesto Passadista (Ou Não)



MANIFESTO PASSADISTA (OU NÃO)
Aos estudantes de Tretas


e se retorno à prisão de 14 grades
é para limá-las com paciência de chinês
eu já sou muito velho para poucas regras
e muito novo para tantas liberdades

que no decassílabo o acento caia
também em sílabas ímpares pouco heróicas
se a bela Safo quis as suas inversões
não serei justo eu a apertar-me em saias

justas, já que, malgrado o meu tesão por whisky,
escocês não sou. Por um soneto que coce
que irrite que intrigue que dê leite que arrisque

não me venham pois com manutenção de rima
nos quartetos. Eu quero o soneto que goze
de quatro e faça gozar, por baixo e por cima.