Sunday, February 27, 2011

Morre o cervejeiro mais antigo do Brasil








Em viagem feita em janeiro de 2006 (Bia terminava a sua tese, eu cozinhava a minha em banho-maria), cheguei a Canoinhas depois de passar por Joinville (ainda não existia a Opa) e São Bento do Sul. Viagem temática, de que sempre fui fã, o desta era bem simples: conhecer as cervejarias de Santa Catarina.

Em Canoinhas, tive o privilégio de passar tarde agradabilíssima em companhia de Rupprecht Loeffler, simpático, solícito, profissional. À beira de tornar-se nonagenário, Seu Loeffler falava com paixão de sua vida e de seu trabalho, o que talvez fosse, para ele e para os felizes que fazem do que amam o seu trabalho, falar da mesma coisa. Muito ele falou de sua Canoinhas do passado, de seus namoros, suas caçadas, o que explicam o monte de macaco empalhado espalhado pelo pequeno salão da cervejaria. Bebi de todas, da Nó de Pinho, da Mocinha, da Malzebier e da Jahu. Mas encharquei-me mesmo foi desta última. Não havia bolachas, ele presenteou-me com vários rótulos, hoje tesouros.

Para além dos visitantes eventuais, como eu, havia os habitués, que naturalmente chegavam à mais antiga cervejaria em funcionamento do país, conversavam com o mais antigo cervejeiro, tomavam sua cerveja e se iam.

Seu Loeffler também tomava sua cerveja, uma após a outra, em seu copo de requeijão enfeitado de bichinhos. Copo que euzinho aqui, colecionador e metido, consideraria o copo menos apto do mundo para se tomar cerveja. O alemão era assim: simples. E provavelmente foi essa combinação de simplicidade e trabalho e, claro, muita cerveja (boa!) que o fez alcançar idade tão provecta.

Vá ele agora tomar sua cerveja mais descansadamente. E fique a sua fábrica preservada, tutelada, protegida, tombada em todos suas partes materiais e imateriais. E declarada, incontinenti, Patrimônio da Humanidade.

Friday, February 25, 2011

Largo do Piolho


Bem ali, no coração do Largo do Piolho, tem um boteco cuja graça é Lavradas. Quem toca o negócio hoje, mas não é de hoje, tem anos, é um cearense de Sobral. Peguei pelo sotaque: estado (mole) e cidade. O boteco tem umas sancas azuis encantadoras, além do São Jorge e azulejos.

Não está, como muitos outros maravilhosos, no Guia de Botequins do Guilherme. Não critico o Guia, que tanto ensinou e ensina, mas decido fazer lista off-Guia, e depois off-off-Guia.

Pego leve, bem leve, manjar de passarinho: giló e cerveja pequena.

Ai, minha Santa Genoveva






Alguns bairros têm isso: bairros dentro de bairros. A Tijuca não tem Muda, Usina, Largo da Segunda-Feira? É tudo Tijuca. Jacarepaguá não tem Praça Seca, Taquara, Gardênia Azul, Anil? É tudo Jacarepaguá. Pois São Cristóvão tem sua Santa Genoveva.

A Santa Genoveva que eu conhecia era a do alto de uma colina parisiense, a que se chega, doucement, subindo a Mouffetard. A santa é padroeira de Paris, coisinha à toa. Isso mostra como, ainda em 1917, queríamos os cariocas ser parisienses. Depois das guerras, passamos a querer ser outra coisa.

A entrada hoje tem aquelas grades horrorosas e guarita. Pode-se entrar, conquanto que se deixe documento de identidade e não se tire foto. Percebam que acedi a 50% das requisições.

O "bairro", a "vila", é, de fato, um oásis, com direito a um templo católico grande demais para ser capela, pequeno para igreja. Como uma novela, grande demais para conto, curto para ser romance. Uma capela novela.

As casas, que existem desde 1917, passaram, em sua grande maioria, por grandes transformações. O que se entende. São, creio, comerciantes, majoritariamente portugueses, que prosperaram silenciosos e adornaram suas casas com o mau gosto que puderam. Imagino mesmo a surda competição que não terá havido entre eles.

Mas quem enfeiou, enfeiou, quem não o fez, não faz mais. As poucas casinhas originais foram tombadas.

Sunday, February 20, 2011

Subi o Morro do Pinto





Estive no Morro do Pinto, na busca do Bar do Carlinhos, que já foi do Manoel, que já foi armazém, construído em 1910, reformado em 1922, que é a data do frontão encimado pela águia.

O boteco é dos sonhos. Velho, de um despojamento franciscano absoluto. A imponência (decadente, é verdade) da fachada contrasta com o interior, pobre em atrativos aparentes, rico em segredos. Localização ímpar. Quase nada para comer, só o trivialíssimo para beber. Dois papagaios, Dunga e Taffarel. Nas prateleiras, onde deveriam figurar bebidas, temos, err, produtos de limpeza. Ainda assim, dos sonhos.

Tomo cervejas, ando ao redor. Na hora de fechar, puxo assuntações, e sou bem recebido. O dono e o amigo estendem copo para mim, conta da casa. A dona me fala de projetos de reformas, ao que esboço leve protesto. Como conhecem bem as cercanias, as palavras são valiosas. Na empolgação, prometo comemorar um meu aniversário ali, só que com Heinekens, ao que não objetam. Fica o croqui do plano.

João do Rio, em seu clássico As Religiões no Rio, disse que "no Morro do Pinto, a feitiçaria impera". Já não saberia dizer se há feitiçaria, mas com certeza há feitiços. Que los hay, los hay.

Tuesday, February 15, 2011

E o Castelo, quem diria, foi parar na Tijuca





Imagine uma cidade que guarda seu marco de fundação, bem como o túmulo de seu fundador, em uma igreja que é, nada mais nada menos, a de seu santo padroeiro.

Imagine esta cidade envolvida em batalha sanguinolenta contra um inimigo cruel. Que faria este inimigo ao se apossar destes tesouros - marco, túmulo, igreja? Naturalmente os destruiria, na tentativa de apagar a história da cidade e a cidade da história, deitando em seguida sal grosso sobre o solo para que nada mais nele vicejasse.

Esta cidade, meus caros, existe, atende pelo nome de Rio de Janeiro e o inimigo são seus próprios governantes que muito fizeram para obliterar sua história. Se não, como entender a derrubada do Morro do Castelo em 1922? Como entender que a existência da igreja dos capuchinhos, dedicada a São Sebastião e guardiã das relíquias de Estácio de Sá, não fosse motivo para poupá-lo? Isso em 1922!!! Ah, Mário, não te culpo, pois estavas apenas começando...

Fica o consolo que o túmulo de Estácio de Sá e o marco da fundação vieram para a igreja nova dos capuchinhos (construída para este fim?), localizada na Tijuca.

Sempre tive preconceito em relação a esta igreja. Achava-a grandona demais, abrutalhada, mal proporcionada.

Ela continua grandona, não lembra as atuais barcas Rio-Niterói? Mas seu interior é lindo! Neobizantina! Veneza a queimar na Haddock Lobo! E com belíssimos vitrais!

E aqui, em 5 de março de 1960, casaram-se o tímido Hélio de Almeida Domingues e a menor Maria de Lourdes von Sydow, que o amava, é verdade, mas que queria mesmo era sair de casa.

Abençoaram-nos Estácio, capuchinhos e Tião com uma enchente que, nas palavras da mãe, inaugurou a temporadas das águas de verão desta muy leal cidade.

Saturday, February 12, 2011

A propósito





Estas são pinturas realmente interessantes, localizadas em um pé-sujíssimo na Gamboa. Ao retratarem atividades indígenas de um modo um tanto idealizado, teriam caído nas graças dos nossos românticos. Porque são, claro, naïf, daí o seu imenso charme.

O pintor se chama Amaro Anacleto Gonçalves Ribeiro, que as fez na década de 1960. Parece que ele pintava motivos assim em botecos de Niterói, mas não sei se por aqui sobrou alguma. As retratadas resistem porque, pasmem, são tombadas pelo Patrimônio que, no entanto, não as restaura e tampouco retira a madeira que cobre a mais interessante delas: uma Iara. A madeira foi posta para que colocassem uma... televisão.

Só as pinturas já valeriam o passeio, mas tem mais. O boteco (Tapajós? Harmonia?) fica em rua que se chama... do Propósito.

E foi aqui, exatamente aqui, que se deu a batalha final da Revolta da Vacina, em 1904, com as tropas federais fazendo verdadeira blitzkrieg no local que a imprensa da época denominou, meio sério meio debochadamente, de Porto Artur. Aqui caiu Prata Preta, líder dos descamisados que não queriam ser vacinados à força, não queriam ter seus cortiços arrasados (olha o Bota-Abaixo do Pereira Passos aí, gente!) e que talvez não quisessem mesmo era ingressar no século XX afrancesado.
Mas eu devo estar romantizando, o que se justifica, dadas as pinturas. É possível, e mesmo provável, que o fantasma do Prata ronde a Praça. Não vi, que a cerveja que tomei foi pouca. Topei foi com o Baiano, nascido e criado na área, estivador aposentado, a falar pelos cotovelos. Ele me levou para ver as pinturas do Nilton Bravo em um outro bar, muito próximo. Mas essa história fica para outro post.

Monday, February 07, 2011

Patrimônio Histórico - A Difícil Questão

Meu texto sobre o Santo Cristo inquietava em mim, mesmo já escrito e postado. Como, aliás, inquietam-me as questões sobre patrimônio. Bem, folheando em casa o belo livro Morro da Conceição - Da Memória o Futuro, comprado, por sinal, na mesma feirinha em que minha mãe arrematou sua fantástica piorra, encontro trecho exemplar, que me acalma, me alegra, me organiza. Diz ele:

"reinscrever o Morro da Conceição na paisagem física e histórica da cidade, sem transformá-lo em um cenário turístico ou em um patrimônio do espetáculo, como a sociedade contemporânea tende a fazê-lo."

Ah, isso sim. Limpar as fachadas azulejadas daquelas pichações porcas, mas não fazer da Zona Portuária um shopping a céu aberto com aquelas lojinhas cheias de bibelôs bonitinhos.

Sunday, February 06, 2011

A Piorra da Vó









Não se vai à Feira da Praça XV em busca de um coisa específica, não se sai de casa pensando: Hoje compro aquela estatueta do Buda ou aquele vaso de Murano ou aquele chaveiro do Bangu ou aquele cartão-postal do Aterro da Glória. Não é assim. A feirinha, como bom sebo, é para flanar, para surpresas, para descobertas.

Foi graças à feirinha que comecei minha coleção de bolachas de cerveja. Eu juntara um punhado em Praga e em Bratislava (1999-2000), mas foi só quando vi um monte de bolachas na barraca do Saul que descobri, Ah, é? Pode colecionar isso? Então eu quero.

À feirinha devo também o pontapé inicial da minha tese (circa 2005), pois lá comprei o livro India Portuguesa, panegírico anacrônico da presença portuguesa em Goa. O prefácio é de ninguém menos que Salazar, que fala, em 1951, das belezas da colonização portuguesa! Cáspite!, pensei, vou mostrar como a literatura rasura, oblitera esse discurso oficial. Aí, nasceu a tese. Graças à feirinha.

E quando fui lá recentemente com a mãe, ela quedou hipnotizada pela piorra que descansava em uma barraca. Era isso!, disse, que eu estava querendo comprar para o Dante e não encontrava de jeito e maneira.

À moda da feira, e como é típico dela, pechinchou e logo a piorra arrebatou. A foto mostra ela me ensinando como funiciona a coisa. Na mesa do Ál-Fárrabi, que parou para ver. Hoje já piorro que é uma beleza. E Dante adora.

Saúde!











Amo fachadas azulejadas. As daqui são ora em policromia, ora em estampilha, formando tapeçarias que deleitam olhos.

Tuesday, February 01, 2011

Ai, meu Santo Cristo!



Como foram desfigurados os bairros da Zona Portuária, por meios de sucessivos aterros, reformas modernizantes (o Bota-Abaixo do Pereira Passos tem início aqui), e, posteriormente, grandes obras como a Perimetral e a Presidente Vargas. Mas (ou por isso mesmo???) ainda conservam um bocado de charme. Mas charme difícil, não aquele charme multicor do Pelourinho, de Tiradentes ou do Mercado Municipal de São Paulo, charme para turista que expulsa os moradores históricos para longe. O charme daqui é feito de decadência e ruínas, e aqui é impossível não lembrar de conversa que tive com o ilustrador goês Mário Miranda, em seu casarão secular decadente: "Gosto da decadência".

Também eu. Tenho mesmo medo (egoísta?) da "revitalização" prometida para esta área, com Vila Olímpica, plano inclinado e outros que tais. São não desejo, claro, que derrubem os casarões. E as casinhas. No mais, por mim ficam assim os galpões, os trapiches, os armazéns, as fábricas, alguns fechados, outros em funcionamento. E, assim, neste charme decadente, a que não falta forte componente de resistência, seja das construções seja dos moradores, encontram-se pequenas jóias (e algumas grandes, como o Cemitério dos Ingleses e a Escola José Bonifácio). Malconservadas, porém não menos jóias.

A igreja que dá nome ao bairro é isenta de grandes interesses em seu interior, mas uma fachada em que há imagem envidraçada é rara por estas terras. A imagem francesa do chafariz da praça, A Fonte da Criança, executada em Val d'Osne como muitas outras desta cidade, só faz aumentar a beleza externa do templo.